sexta-feira, 28 de julho de 2017

Os cantos ancestrais dos povos afro-brasileiros



Os povos escravizados e muitos grupos de trabalhadores do campo, recorriam aos cantos folclóricos e míticos, para que se diminuísse a extenuada jornada de trabalho, muitas da vezes, forçada, nos campos em construção. Esse sempre foi um antigo costume da cultura afro-brasileira, mas também dos negros escravizados nos campos de algodões, do sul dos Estados Unidos.

A música, na idade média, surgiu associada aos ritos primitivos. Para os povos dos quilombos - que sempre recorreram aos cantos ancestrais - é um modo identitário e de resistência, na demarcação de seu território, fortalecendo o elo com sua cultura africana, de forma a manter os rituais tradicionais e, para que não se percam os laços que a escravidão tentou destroçar. Assim, não só nos coletivos de trabalho mas nos terreiros de candomblés, nas tradições de suas religiosidades, os cantos míticos reforçam a identidade e cultura de um povo sofrido, que luta para manter as suas tradições. Por sua vez, os brancos chamavam esses cantos negros de "spirituals", para diferenciar dos hinos compostos por eles.
As toadas, as ladainhas, as novenas, as trovas populares, muito comuns nos festejos religiosos, como do Ticumbi de São Benedito e São Sebastião, no norte do Espírito Santo, nas Folias de Reis, espalhadas por todo o Brasil, tornaram-se parte de suas crenças. É o que dá sentido às suas existências. Como afirmou Zumthor, “o verbo, força vital, vapor do corpo, liquidez carnal e espiritual, no qual toda atividade repousa, se espalha no mundo ao qual dá a vida”.

Quando o povo negro entoa o seu canto, emerge uma força poderosa, que lembra o lamento sofrido do tempo da escravidão. Mas ela, a escravidão, anda rondando por aí. Anda dando sinais, muito visíveis, nesses tempos de incertezas, de que a senzala não acabou. 

Portanto os negros escravizados, construtores das riquezas de muitos países, como no caso do Brasil, influenciaram, com seu vasto legado cultural, o nosso povo miscigenado. E seus discursos poéticos e sociais, cantados em prosas e versos, ecoaram para além dos terreiros, e evocaram os trabalhadores, nos campos em construção. E, como "O sopro da voz é criador" (ZUMTHOR, 2010.p.10), eles cantam suas trovas:

"Ó alegria do mundo
por onde é que tens andado?
Tenho corrido mil terras,
e não te tenho encontrado"

Definitivamente, suas vozes se fizeram canto a habitar entre nós.

Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

domingo, 23 de julho de 2017

Comunidades Quilombolas do ES, memórias e abandono


A situação dos Quilombolas do Estado do Espirito Santo vem se agravando a cada ano. Alguns anos atrás, com os avanços nas áreas sociais, de 2003 a 2015, houve ganhos por parte dessas comunidades. Com a crise instalada, com o golpe, os efeitos sobre essas comunidades são visíveis.

Para piorar mais a situação, um fenômeno tem afetado as áreas em que vivem essas comunidades: a desertificação.

Preocupado com o futuro das áreas, em situação de desertificação, Fábio Ribeiro Pires, professor da UFES, afirma que as monoculturas praticadas de forma errada e o pastoreio excessivo, diminuem a capacidade que a terra tem de filtrar a água. E que os moradores dessas comunidades não têm dinheiro para “perfurar o lençol freático”, diz ele. Quem tem dinheiro tem uma situação diferente, porque pode pagar para fazer a perfuração.

O apoio do governo Federal e Estadual, é uma coisa que essas comunidades não recebem nesses últimos dois anos.

Se não bastasse o abandono por parte do poder público, essas comunidades sofrem com a violência policial, como aconteceu na comunidade São Domingos, no norte do Espírito Santo.

Estamos programando uma exposição sobre a situação das mulheres nas comunidades Quilombolas do Estado, com o foco na riqueza de suas histórias, de suas memórias, transmitidas através das gerações, mas que na “realidade atual perdeu a faculdade de escutar”, como diz a profa. Sobreira.  

A minha exposição pretende mostrar essa memória e sabedoria das mulheres mais velhas das comunidades quilombolas, apresentadas através de signos linguísticos simbólicos.

Para um outro momento temos projeto para um documentário sobre a situação dessas comunidades, que vêm se agravando nos últimos vinte quatro meses, devido a violência sofrida em suas diferentes formas, sem que o poder público tenha, nas esferas Estadual e Federal, contribuído em coisa alguma para melhorar a situação dessas comunidades do Estado. 

Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

quinta-feira, 20 de julho de 2017

Jim Morrison and The Doors: a volta de dioniso


Na efervescência cultural dos anos 60 e 70 surgiram nos Estados Unidos e na Inglaterra, os grandes grupos musicais; a chamada pop music. Ponto de partida: Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan, Joan Baez, o rock e o blues e a pop music. Mas a pop music se caracteriza como uma espécie de sincretismo, incluindo até música indiana: naqueles anos, pois, por excelência da nova cultura (Grupo Mahavishnu Orchestra), reminiscências pagãs com (Abraxas de Carlos Santana). Havia uma espécie de despertar espiritual que não excluía o corpo, ao contrário, o sexo sendo adorado como na Índia (Ling Yoni).

O puritanismo cristão anglo-saxônico foi renegado e se abriu a uma nova era pagã. E entre todos esses grupos, havia um que realmente quebrou “as portas da percepção”; e seu nome era justamente The Doors, com seu líder carismático: Jim Morrison. Mas o que é que caracteriza The Doors em relação aos outros grupos: de certa maneira eles se afastam da música “flutuante” tipo Pink Floyd e outros grupos. Mas essa música “flutuante” não é totalmente ausente do The Doors, mas há como uma volta do rock, mas um “Rock de Ópera”, grandioso: o Hard rock; música que transborda como Wagner e Beethoven, arte dionisíaca do excesso, do demais.

Os Rolling Stones tinham uma música: “Sympathy For The Devil"; havia o grupo Uriah Heep. Tudo isso consagrado não tanto à volta do Diabo, mas à volta de Dioniso, deus grego da embriaguez, da orgia vital e do delírio. O Diabo é apenas Dioniso cristianizado, e no chamado espírito fáustico, de Goethe – no segundo Fausto – mostra que o Diabo é um construtor e que não se cria sem destruir, que não há vida sem o mal, que não há vida sem morte.

Dioniso pois; e não Jeová e o Diabo.

60 e 70 eram os anos da revolução sexual, onde o sexo era livre e não preso ao conhecimento e domado e amaldiçoado pela religião cristã. Nietzche: “O cristianismo não matou Eros, ele fez dele um vício”. A geração dos pais dos cabeludos tinha uma antiga hipocrisia em relação ao sexo: era algo sujo, mas eles transavam a doidado. E os cabeludos e alguns chefes de torcidas, como Jim Morrison, provocavam as autoridades americanas puritanas, hipócritas, enquanto o presidente Kennedy, símbolo da nação cristã, cometia o adultério com Marilyn Monroe.

Isso tudo lembra a esperança e a revolta de um mundo melhor do poeta Arthur Rimbaud, que um século antes já havia instaurado esse novo espírito com um novo corpo. Seu livro, “Uma Temporada no Inferno”, termina pela frase: “Possuir a verdade numa alma e num corpo”. Artaud também influenciou os cabeludos, por causa de ser o único escritor que realmente fala do corpo. A diferença é que o corpo dos cabeludos é, antes de tudo, erótico. Culto de Shiva: o falo – Dioniso. E Jim Morrison sabia seu corpo. Seu corpo falava, não só pela voz poderosa e não miada como os Beatles. Ele era uma pilha corporal espiritual; um Xamã que enfeitiçava o público. Não foi o único a ser assim, mas ele tinha uma presença sagrada na música, nas letras e no palco.

Jimi Hendrix, Janis Joplin, geração suicida: Eros Tanatos; mas que marcou definitivamente o espírito do mundo e de uma certa maneira, recriou as ligações entre ocidente e oriente. Espírito racional e espírito xamãnico.

Hoje o sistema ganhou, engoliu e comercializa qualquer revolta. Aliás, já The Doors e outros, foram absorvidos pelo mercado como produto; o que exasperou Jim Morrison, que morre de ataque cardíaco.

Não vou dizer que uma lição ficou; não vou dizer que os sobreviventes dessa geração continuam tão dionisíacos e desesperados, como Jim Morrison, diante dessa sociedade de cachorros conservadores; de homens ocos e unidimensionais (T.S. Eliot, Marcuse).

Abraço a todos os desesperados dionisíacos.


Gilbert Chaudanne - escritor, pintor, crítico de arte e de literatura.