Os povos escravizados e
muitos grupos de trabalhadores do campo, recorriam aos cantos folclóricos e
míticos, para que se diminuísse a extenuada jornada de trabalho, muitas da vezes,
forçada, nos campos em construção. Esse sempre foi um antigo costume da cultura
afro-brasileira, mas também dos negros escravizados nos campos de algodões, do
sul dos Estados Unidos.
A música, na idade média,
surgiu associada aos ritos primitivos. Para os povos dos quilombos - que sempre
recorreram aos cantos ancestrais - é um modo identitário e de resistência, na
demarcação de seu território, fortalecendo o elo com sua cultura africana, de
forma a manter os rituais tradicionais e, para que não se percam os laços que a
escravidão tentou destroçar. Assim, não só nos coletivos de trabalho mas nos
terreiros de candomblés, nas tradições de suas religiosidades, os cantos
míticos reforçam a identidade e cultura de um povo sofrido, que luta para
manter as suas tradições. Por sua vez, os brancos chamavam esses cantos negros
de "spirituals", para diferenciar dos hinos compostos por eles.
As
toadas, as ladainhas, as novenas, as trovas populares, muito comuns nos
festejos religiosos, como do Ticumbi de São Benedito e São Sebastião, no norte
do Espírito Santo, nas Folias de Reis, espalhadas por todo o Brasil,
tornaram-se parte de suas crenças. É o que dá sentido às suas existências. Como
afirmou Zumthor, “o verbo, força vital, vapor do corpo, liquidez carnal e espiritual,
no qual toda atividade repousa, se espalha no mundo ao qual dá a vida”.
Quando o povo negro entoa o seu canto, emerge uma força poderosa, que lembra o
lamento sofrido do tempo da escravidão. Mas ela, a escravidão, anda rondando
por aí. Anda dando sinais, muito visíveis, nesses tempos de incertezas, de que
a senzala não acabou.
Portanto os negros escravizados, construtores das riquezas de muitos países,
como no caso do Brasil, influenciaram, com seu vasto legado cultural, o nosso
povo miscigenado. E seus discursos poéticos e sociais, cantados em prosas e
versos, ecoaram para além dos terreiros, e evocaram os trabalhadores, nos
campos em construção. E, como "O sopro da voz é criador" (ZUMTHOR,
2010.p.10), eles cantam suas trovas:
"Ó alegria do mundo
por
onde é que tens andado?
Tenho
corrido mil terras,
e
não te tenho encontrado"
Definitivamente, suas vozes se fizeram canto a habitar entre nós.
Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.
Excelente. A autora este texto foi nas raízes. No Brssil, o povo negro contiuava a se comunicar atráves dos tambores. Os americanos, quando descobriram isso, os proibiram de tocar tambores, porque sabiam que eles ainda tinham uma linguagem, mesmo que à distância. Ironicamente, daí nasceu o Blues, que era uma forma de lamento por não poderem mais entrar em contato. Uma questão importante citada aqui: a volta da escravidão. O legado continua. Acho que com os índios são os verdadeiros brasileiros. Nesses tempos sombrios, um texto impotantíssimo. A influência afro é tão importante que a revolução cubana respeitou os cultos e a organização. Negar essas raízes é uma forma de racismo e preconceito absurdos. Um texto importante dentro de um país que se recusa a assumir as raízes.
ResponderExcluirTexto bem construído, que atinge sua finalidade de informar através de uma forma literária sintética e agradável ao leitor. Suas falas lembram do quanto a nossa riqueza musical deve à cultura africana, expressa nos lamentos e cotidiano dos escravos. A relação entre escravidão de antes e de agora, esta de modo disfarçado com as correntes contemporâneas das leis a favor do Poder, no nosso país, também está bem colocada. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada Elmo Wyse Rodrigues e Natanael Gomes de Alencar. Logo terá outro.
ResponderExcluirObrigada Natanael, meu amigo Natanael Gomes de Alencar.
ResponderExcluirDe nada. Foi um prazer.
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