quarta-feira, 24 de julho de 2019

VAN GOGH E A BOCA DOS TRIGAIS.

                   
                                                                                                                     "Campo de trigo com ceifador" Van Gogh (1889)




Quando se olha os quadros de Van Gogh, sobretudo as paisagens, temos a impressão que eles são aspirados por uma grande boca invisível. Uma sensação não de perda, mas de fuga, como se o mundo fugisse de si mesmo para abolir-se no infinito.

E se isso não aparecer nas figuras, fica em  evidência em quadros como “o jogo de bilhar” ou “o quarto de Vicent” e, de uma maneira evidente, nas paisagens. Essa perspectiva é “forçada” e cria esse efeito de fuga, que cria uma aspiração no quadro, uma “invaginação”. Não é o imponderável do impressionismo manso, delicado; aqui em Van Gogh, é como um vento forte que balança tudo.

Van Gogh, na sua pintura, é um camponês.  Ele é atraído pelo campo, pela terra do campo e seu sol sagrado. Um paraíso perdido para Van Gogh, que o percorre a grandes passos como um incêndio ambulante (sua cabeleira ruiva); paraíso perdido porque a paisagem é engolida no seu infinito e como retorno, cria um vento que balança todo o quadro. Uma espécie de tempestade vinda do Buraco invisível, mas presente e que se manifestará no tiro de revolver e o Buraco no coração de Vicent.

Enganamo-nos em associar demais Van Gogh à sua pintura. Se há uma relação, ela é de um paralelismo e não de convergência.

Van Gogh é o trigal balançado pelo vento e não é. Van Gogh é um céu de tempestade azul da Prussia e não é. Tanto a paisagem pinta Van Gogh quanto Van Gogh pinta a paisagem. É fenomenológico e não psicológico; expressionista ou essencialista.

Uma pintura desse tipo é muitas vezes catalogada como expressionismo, mas o expressionista projeta sua subjetividade no que vai pintar. Aqui  há isso mas há o contrário: a paisagem se projeta em Van Gogh, fazendo assim um jogo de espelho até o infinito (reflexão abissal): Van Gogh não é suficientemente narcísico para se ver em todas as coisas. Ele é mão de ouro tanto afetivamente como esteticamente. Sua pintura é ontológica, quer dizer: ele pinta um dos rostos possíveis do ser. Vicent sente a paisagem como algo meio “máquina”, meio estranho e belo. A mesma coisa para os modelos humanos: o carteiro Roulin com sua grande barba ondulada e ruiva lembra os trigais.

Van Gogh, como todo artista bom, cria uma unidade no mundo que antes dele não era visível. Da mesma maneira Mona Lisa. Leonardo da Vinci nos permite reconhecer as “Mona Lisa” na rua.

O artista é um abridor de olhos (às vezes de lata de sardinha, fome...).  “Il donne à voir”, escreve Aragon, se não me engano. Ele nos faz ver as coisas como elas são (Elisabeth Bishop).

É uma grande besteira qualificar a pintura de Vicent de subjetiva, ligando sua obra com sua vida sofrida. Não é o sofrimento que fez  Vicent  pintar, porque sua pintura, em geral, não é essa vertente sofredora da vida. Seus trigais não são desesperados, eles cantam uma ária de opera poderosa.

O blábláblá dessas conversas a respeito da sua vida, quer nos fazer acreditar que os grandes artistas são anormais, doentes. Ora como escreve Antonin Artaud, os quadros de Van Gogh, são quadros da saúde. Vicent nunca foi louco, os zés manés fabricaram sua loucura porque esses querem que todo mundo seja como eles= burros.

Mas Van Gogh perdeu sua vida e ganhou sua morte no trigal – uma morte de Samurai (para ele que gostava tanto de estampas japonesas). Ele morreu como um grande guerreiro, para salvar sua honra: a honra reconquistada de Vincent Van Gogh.


Gilbert Chaudanne, escritor, pintor e crítico.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

HOJE TEM FESTEJOS NO CÉU








                          Foto de Zélia Siqueira


"Que bom que você veio minha santa.”

Era assim que ele se referia a mim, todos os anos quando eu chegava para o Baile de Congo de São Benedito, conhecido como Ticumbi de São Benedito.

Recordo-me das vezes em que queria cantar junto com eles, enquanto o congo apresentava e eu os fotografava. Ele, notando a minha tentativa de cantar, quando passava ao meu lado, durante a apresentação, elevava o tom para que eu escutasse e aprendesse. Muitas foram as vezes que observei sua generosidade para comigo. Era uma cumplicidade boa. Uma amizade que deixou muito boas lembranças entre nós, os amigos.

Hoje completa um ano de sua partida.

Apesar dos seus 81 anos de idade, quando do seu falecimento, ele tinha uma alegria e um brilho no olhar, que só encontramos nos seres prenhes de vida. Essa alegria e brilho no olhar, que mais parecia um menino matreiro, é o que marca fortemente, a sua passagem entre nós. Embora tenha havido muitos momentos especiais na companhia desse grande mestre de congo do Ticumbi de São Benedito, que jamais esqueceremos.

Suas rimas, suas brincadeiras, o som do seu pandeiro e da 8 baixos deixa saudades entre os amigos e todos da comunidade do Sapê do Norte.

Seu Miltinho, parecia mesmo era uma criança brincando de viver. Tanto brincou, que São Benedito dos pretos o convocou para os festejos em outra dimensão.

Por certo hoje tem festejos de São Benedito no céu, para comemorar um ano da sua chegada. E nós ficamos aqui escutando com os ouvidos do coração, os cantos desse amado mestre de congo, que ecoam das alturas para nos consolar.

Zélia Siqueira – formada em jornalismo e artes, é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.