segunda-feira, 29 de abril de 2019

FESTEJANDO À GRANDE MÃE





                         Foto de Zélia Siqueira



O dia está tão especial que dá vontade de alçar voos nos ares desse céu de anil, com minha varinha de condão, para completar a magia que se instala no passar lento e saboroso das horas, enquanto escrevo, nessa tarde  de uma suave serenidade. Perpassa aqui, uma correte de ar fresco, que impele-me a levantar para conferir o que os meus sentidos já pressentira. 

Há cantos. 

Lá fora bem-te-vis entonam suas agudas vozes. Outros passarinhos menos exóticos, mas não menos em matéria de sonoridade, complementam o coro com seus belos cantos.  O que também moveu-me a levantar, para conferir a obra da natureza. 

Desloco-me até a porta, que dá para o vasto quintal da “Fonte Grande”, tomado pelo verde pino, com variação de luz e sombras, que ressaltam as degradações de verdes. Observo arrebatada, esse laboratório vivo de verde albahaca, verde trebol, verde pera, verde lima. Verde mesmo.

Ainda tomada pela passagem desse dia dela e, sem saber o que fazer com tudo isso que os meus olhos e meu espírito alcançam, começo a cantar com os passarinhos:

"- Iaiá você vai à Penha
Me leva, ô me leva
Eu vou tomar capricho
Meu bem vou trabalhar
Eu tenho uma promessa a pagar
Essa promessa que eu tenho a pagar
É a Santa Padroeira 
Ela vai me ajudar
Essa promessa que eu tenho a pagar
É a Santa Padroeira
Ela vai me ajudar
Ô Iaiá."

Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

As noites revelam segredos







                                    Gregório Colbert (fotógrafo e documentarista canadense)



O vento é amigo das noites. Na solidão das horas, quem estará desperto para notar esse enlace orgástico e afetuoso, entre esses dois fenômenos da natureza. Talvez um galo que cante distante. Talvez a coruja que sobrevoa a margem da floresta negra; ou o morcego frugívoro, que polinizam as flores dos bosques e jardins, na espera dos bons frutos.

O certo é que as noites revelam seus segredos perfumados. Mas nem todos estarão aptos a percebê-los. As noites escondem mistérios e encantamentos nas raízes das plantas.

Árvores dançam com o vento; que faz amor com elas e exalam odores perfumados, que seduzem espíritos despertos. E, quando amanhecem os dias, germinam flores e frutos, por todos os horizontes dos campos livres, que só as deusas sabem presenciar, por "saber sem saber".

É a fertilidade mostrando aos homens e mulheres que dormem, mas eles não sabem "entender entendendo", porque estão tomados  pela letargia. Nem sabem sonhar um sonho que nasce da alma, que se alimenta de si mesma.

As noites revelam segredos, que só se escutam em jardins suspensos; quando a poesia nos põe asas para ver o mundo e, contemplando com olhos de pássaros, visitamos florestas mágicas.


Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

PAULO FREIRE, O ANDARILHO DA UTOPIA







                                       UMA UTOPIA EM CONSTRUÇÃO

   
                                                                                                Foto de Zélia Siqueira

Uma vez ouvi alguém dizer que falar difícil é fácil, mas que o difícil mesmo é falar fácil. Talvez ai resida a beleza do solo Paulo Freire, o andarilho da utopia, interpretado pelo ator, diretor, palhaço, professor, fundador do Grupo Off-Sina e da Escola Livre de Palhaço (Elispa), Richard Riguetti, com direção de Luiz Antônio Rocha.
O espetáculo reúne uma série de elementos como a simplicidade, desde a dramaturgia, onde Junio Santos faz importantes recortes da obra de Paulo Freire, contextualizando-os e, através de fragmentos de outros dramaturgos como Brecht e Ionesco (diga-se de passagem, o primeiro épico e o segundo absurdo), além de músicas de época e atuais, acaba por propiciar ao público o que há de universal no pensamento do pedagogo.
Da cenografia, nesta mesma linha, não tem nenhuma pretensão ilusionista para com a plateia e a iluminação é tão precisa que em vários momentos ela desaparece para emergir o personagem. Tudo é mostrado às claras, desde os adereços até o espaço cênico que se transforma e muda de lugar na medida em que o ator se movimenta, não tem coxias e nem rotunda e o público está diante do esqueleto do teatro, por dentro.
O mais importante é que esse suposto "distanciamento", ou seja, a consciência de que se está no teatro e que o teatro não é a realidade se resolve numa dialética fundamental, considerando que a estrutura do espetáculo, entendido como um ato "cenopoético", onde reúne linguagens de circo, teatro de palco e de rua, além da poesia, é claro, permite ao espectador se aproximar e até mesmo entrar na obra, na medida em que o ator/personagem Richard Riguetti o convida para compor a cena e que a peça se transforma num ritual e o personagem Paulo Freire se mostra como uma espécie de "contador de causos" que é a sua maneira amorosa de decifrar o mundo que vai de seu quintal às galáxias e das galáxias ao seu quintal, quase como uma brincadeira.
A sinceridade do personagem que se empresta para que a poesia de Paulo Freire desabroche na sua voz, mais a suave e ao mesmo tempo segura direção de Luiz Antônio Rocha revelam a nobreza e a maturidade deste espetáculo, apesar de ainda estar na estreia.
Tendo em vista os tempos que correm, Paulo Freire, o andarilho da utopia, transforma-se num ato de resistência e, ainda mais, uma resistência que enfrenta a truculência com outras armas, ou seja, com o projétil da paz como possibilidade de vazar as nuvens do absurdo da intolerância para atingir o coração com o amor ao conhecimento.
Sim, Paulo Freire será o eterno andarilho, aquele que anda muito, percorre muitas terras e anda de forma erradia para os que não acreditam no sonho. Sim, Paulo Freire é a utopia [do grego "ou" (não) e "topos" (lugar)], a busca permanente e incansável desse lugar ideal onde reina a harmonia entre os indivíduos e o compromisso com o bem-estar da coletividade. Assim, se a utopia é este não-lugar, ou um lugar que não existe, ser andarilho é lutar para ele venha a existir e esse espetáculo está contribuindo com o alicerce desta construção.


- Wilson Coêlho, poeta, ator e diretor teatral.