UMA UTOPIA EM CONSTRUÇÃO
Foto de Zélia Siqueira
Uma vez ouvi alguém dizer
que falar difícil é fácil, mas que o difícil mesmo é falar fácil. Talvez ai
resida a beleza do solo Paulo Freire, o andarilho da utopia, interpretado pelo
ator, diretor, palhaço, professor, fundador do Grupo Off-Sina e da Escola Livre
de Palhaço (Elispa), Richard Riguetti, com direção de Luiz Antônio Rocha.
O espetáculo reúne uma série de elementos como a simplicidade,
desde a dramaturgia, onde Junio Santos faz importantes recortes da obra de
Paulo Freire, contextualizando-os e, através de fragmentos de outros
dramaturgos como Brecht e Ionesco (diga-se de passagem, o primeiro épico e o
segundo absurdo), além de músicas de época e atuais, acaba por propiciar ao
público o que há de universal no pensamento do pedagogo.
Da cenografia, nesta mesma linha, não tem nenhuma pretensão
ilusionista para com a plateia e a iluminação é tão precisa que em vários
momentos ela desaparece para emergir o personagem. Tudo é mostrado às claras,
desde os adereços até o espaço cênico que se transforma e muda de lugar na
medida em que o ator se movimenta, não tem coxias e nem rotunda e o público
está diante do esqueleto do teatro, por dentro.
O mais importante é que esse suposto "distanciamento",
ou seja, a consciência de que se está no teatro e que o teatro não é a
realidade se resolve numa dialética fundamental, considerando que a estrutura
do espetáculo, entendido como um ato "cenopoético", onde reúne
linguagens de circo, teatro de palco e de rua, além da poesia, é claro, permite
ao espectador se aproximar e até mesmo entrar na obra, na medida em que o
ator/personagem Richard Riguetti o convida para compor a cena e que a peça se
transforma num ritual e o personagem Paulo Freire se mostra como uma espécie de
"contador de causos" que é a sua maneira amorosa de decifrar o mundo
que vai de seu quintal às galáxias e das galáxias ao seu quintal, quase como
uma brincadeira.
A sinceridade do personagem que se empresta para que a poesia de
Paulo Freire desabroche na sua voz, mais a suave e ao mesmo tempo segura direção
de Luiz Antônio Rocha revelam a nobreza e a maturidade deste espetáculo, apesar
de ainda estar na estreia.
Tendo em vista os tempos que correm, Paulo Freire, o andarilho
da utopia, transforma-se num ato de resistência e, ainda mais, uma resistência
que enfrenta a truculência com outras armas, ou seja, com o projétil da paz
como possibilidade de vazar as nuvens do absurdo da intolerância para atingir o
coração com o amor ao conhecimento.
Sim, Paulo Freire será o eterno andarilho, aquele que anda
muito, percorre muitas terras e anda de forma erradia para os que não acreditam
no sonho. Sim, Paulo Freire é a utopia [do grego "ou" (não) e
"topos" (lugar)], a busca permanente e incansável desse lugar ideal
onde reina a harmonia entre os indivíduos e o compromisso com o bem-estar da
coletividade. Assim, se a utopia é este não-lugar, ou um lugar que não existe,
ser andarilho é lutar para ele venha a existir e esse espetáculo está
contribuindo com o alicerce desta construção.
-
Wilson Coêlho, poeta, ator e diretor teatral.