sexta-feira, 2 de novembro de 2018

a fortaleza



No poema “Agroval”, Manoel de Barros narra o que faz uma imensa arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em risco: a arraia abre suas grandes asas e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Entre seu abdômen e o chão úmido a arraia inventa um “pantanal menor”, um pantanal de resistência. Para que a vida não morra, a arraia convida tudo o que vive para vir morar sob suas asas. Migram e se instalam ali não apenas bichos, instalam-se também sementes e brotos de futuras flores, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um ventre. Sob a proteção da tal Gaia, a vida continua, resiste, cresce, fortalece-se; sob o coração da arraia acontecem alianças, agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois lá fora, quando as águas secam, os predadores sorrateiros lucram com a morte, e ficam à espreita. Mas a arraia é forte, resistente, não a vencem os predadores oportunistas. Não seria tal ação da arraia o modo como a própria natureza nos ensina o que é a virtude ético-política que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais, em luta contra a tirania, nomearam Quilombo?

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo” (Manoel de Barros)

"Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas” (Manoel de Barros).






Elton Luiz Leite de Souza - Escritor, doutor em filosofia e profo. da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.


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