quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Não nos acostumemos com as normalidades inaceitáveis









                        Foto: Zélia Siqueira.


Falei hoje com uma pessoa muito grandiosa. De uma integridade, dignidade e senso de justiça, que raramente se encontra num ambiente de trabalho doentio e fora dele. Discernimento foi o que nunca faltou a essa pessoa; que vou chamá-la aqui, de "Maria." Em tempos de vigília é bom que não se exponha uma pessoa como essa. Por isso dei-lhe o codinome de Maria. Daí penso em Maria, mãe dos filhos de Deus. Maria, protetora dos filhos dos homens. Maria, a amiga verdadeira. A Grande Mãe.

A amiga de que falo aqui, foi a aliada que encontrei, em momentos de enfrentamentos naquele ambiente doentio, de pessoas adoecidas e  muitos, indelicados, onde um dia tive o desprazer de conviver. Por muitos anos em que grande parte de minha vida, passei ali, tive duas aliadas. Uma Maria que me acolheu quando cheguei e outra de mesmo nome, que se colocou ao meu lado, ao sair dali.

Foram longos anos de adoecimento; de perseguições políticas; de assédio moral e sexual; torturas psicológicas; para que me enquadrasse na "caixinha", que enquadram pessoas sem personalidade e sem caráter. Me adoeceram, mas não me dobrei.

No decorrer da minha vida de escrava, me recusei a promoção para representar a empresa na justiça, contra os trabalhadores. Por isso fui tratada como inimiga, e não só por isso. Tiveram inúmeros outros fatos, que vou me poupar de discorrer aqui, porque me é muito doloroso e vocês não têm nada com isso, caros leitores. Se o assunto veio à tona, foi porque, ao falar com a amiga, "Maria", hoje, me peguei pensando como será a vida dos trabalhadores em tempos sombrios, como agora.

Os corpos serão aniquilados com mais requintes de crueldade, com mais intensidade e adoecerão, enquanto as testemunhas silenciarão ou se colocarão ao lado do patrão/poder? Ou teremos a sorte de cruzararem nossos caminhos, Marias amigas, semelhantes à minha, que não se calam diante das injustiças?


Que não nos acostumemos com as chibatadas; com as normalidades inaceitáveis e indelicadas; com as mordaças e com o terror. Sejamos "Marias", para que não estejamos sós.



Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.



sexta-feira, 2 de novembro de 2018

a fortaleza



No poema “Agroval”, Manoel de Barros narra o que faz uma imensa arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em risco: a arraia abre suas grandes asas e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Entre seu abdômen e o chão úmido a arraia inventa um “pantanal menor”, um pantanal de resistência. Para que a vida não morra, a arraia convida tudo o que vive para vir morar sob suas asas. Migram e se instalam ali não apenas bichos, instalam-se também sementes e brotos de futuras flores, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um ventre. Sob a proteção da tal Gaia, a vida continua, resiste, cresce, fortalece-se; sob o coração da arraia acontecem alianças, agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois lá fora, quando as águas secam, os predadores sorrateiros lucram com a morte, e ficam à espreita. Mas a arraia é forte, resistente, não a vencem os predadores oportunistas. Não seria tal ação da arraia o modo como a própria natureza nos ensina o que é a virtude ético-política que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais, em luta contra a tirania, nomearam Quilombo?

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo” (Manoel de Barros)

"Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas” (Manoel de Barros).






Elton Luiz Leite de Souza - Escritor, doutor em filosofia e profo. da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.