quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Manoel de Barros: a empoética terapêutica




         O poeta precisa alcançar uma língua dos começos, que é sempre começo começando: um começo que nunca termina, um começo que (re)começa a cada vez que o poeta escreve: “Na ponta do meu lápis há apenas nascimento”.
        Os gregos que viveram antes de Platão tinham um nome para esse começo que é sempre começo. Eles o chamavam de “physis”.[1] Convencionou-se traduzir physis por natureza. Contudo, a palavra natureza está viciada por séculos de pensamento objetivista, “coisal”, que parte sempre do já nascido, do já feito: do meio-dia ou, no máximo, da manhã, nunca da aurora. Porém,

Durante as viagens sem rumo dos andarilhos
eles são instalados na natureza igual se fossem uma aurora.[2]
                                                                                    
       Originariamente, physis significa “brotar” ou “desabrochar”. Uma fonte também pode ser uma imagem para a physis, desde que a dessubstantivemos e a apreendamos como verbo: fontanejar. A rosa desabrocha, ela se abre e se oferece à luz, e assim fontaneja.  Não apenas as rosas, várias outras coisas desabrocham, fontanejam.
       Porém, a coisa que desabrocha pode nos fazer esquecer do desabrochar, pode nos cegar para esse processo quase imperceptível aos olhos que apenas veem o “acostumado”. Algo desabrocha na flor que desabrocha, e esse algo  não é a flor, é uma pré-flor, uma pré-coisa. Se captarmos isso que desabrocha na flor, mas que não é flor, veremos nossos próprios olhos desabrocharem, fontanejando, virando visão fontana.[3]
       Se virmos em nossa própria visão o desabrochar da visão que não é apenas a nossa, seremos capazes de ver que tudo é desabrochar de um desabrochar que nunca morre. Veremos fontanejar em nós uma “Canção do ver”.[4] A boca que fala desabrocha, assim como a mão que escreve também fontaneja; igualmente desabrocha a criança que nasce, o sol que se eleva, o afeto no peito, o conhecimento na alma. Tudo desabrocha. Mesmo a alma em silêncio tem o silêncio a lhe desabrochar. Mesmo o homem que morre faz desabrocharem lembranças que dele teremos. Para quem o crê, o homem que morre desabrocha outra coisa.
       Para os gregos, a physis não é o desabrochar disto ou aquilo, mas o desabrochar que se expressa nisto e naquilo, e somente pode mostrar-se desabrochando. A physis desabrocha em cada coisa, desabrochando de si mesma, mantendo ligado a ela o que dela desabrochou. A physis desabrocha não apenas na rosa, na boca que fala, na criança que nasce...mas em tudo, no todo. A physis é o desabrochar que permanece em si mesmo como desabrochar. A physis desabrocha de si mesma e se mostra em cada coisa que dela desabrocha. Na rosa que desabrocha também desabrocham a água que ela sorveu, os minerais do solo que ela sugou, a luz que ela absorveu e também desabrocham através dela os bilhões de anos da terra que a preparou.



Elton Luiz Leite de Souza - Filósofo e profo. da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.



[1] Cf Gerd Borheim, Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 2001.
[2] BARROS apud MÜLLER, 2010, p. 155.
[3] “Canção do ver”, Poemas rupestres, p. 11




                                                                                   (desenho feito por manoel)




Fontes: https://multitudopoesiaartefilosofia.blogspot.com/2018/03/a-empoetica-terapeutica-de-manoel.html
Revista Guavira Letras

domingo, 12 de agosto de 2018

O pão da vida



Não tenho grandes simpatias por datas comemorativas, mas desde muito além de ontem, me pego relembrando do meu velho pai. Às vezes, de pequenos detalhes que passeiam na minha memória, dos tempos em sua companhia, quando vivíamos no campo. De quando viajava na garupa de seu cavalo, em noites de lua, enquanto ouvia suas estórias comoventes, para me entreter do cansaço da longa viagem. Eu, ainda muito pequenina, me envolvia de tal modo que o implorava para contar mais e mais estórias. E era tudo o que ele queria. Aí ele caprichava floreando as estórias da Dona Corochinha; de Guimá e Guimarães, e muitas outras que já nem me recordo mais. Mas o que eu me recordo mesmo, era da emoção que vertia do meu ser pequenino, ao ouvir aquelas estórias tristes e alegres ao mesmo tempo. Porque no final de cada estória tinha sempre uma alegria, que eu aguardava com o coração apertadinho de criança. Sempre tinha um final feliz, como foi a minha vida em sua companhia. .

Mas feliz mesmo era quando Vulcão uivava, nas várias madrugadas de lua cheia, para anunciar as suas chegadas, das longas viagens sem mim. Era na lua cheia que ele sempre escolhia para voltar para casa. Meu pai era um viajor e passava meses longe de casa. Não que ele abandonasse a gente. Ele ia buscar o nosso sustento. E para não esquecer, Vulcão tinha a cor dos meus cabelos e era um cão boiadeiro de um tamanho, coragem e uma força que nunca vi igual. Creio que herdei a coragem do Vulcão. Na bagagem vinha o que mais me alimentava o espírito de artista. Além de ter notado, ainda muito cedo, minhas habilidades criativas, ele soube estimular essa pulsão de vida em mim. Portanto, nunca me faltava material para pintar, desenhar e ler.

Lembro-me de algumas vezes ele me pegar observando passarinhos, besouros multicolores; borboletas. Noutras, as cores das pequenas flores silvestres, da luz que se projetava nas árvores e refletia em suas folhas, sombreando o chão com grafites naturais, que eu os transportava para meus desenhos. Um mundo mágico que se desvendava para mim e ele soube compreender e estimulou, à sua maneira muito sábia, a minha criatividade. Por isso até hoje eu me encanto com as dádivas da natureza.
Pai é aquele que dá amor a uma criança. E o amor vem de várias maneiras. Essas que descrevo aqui, foram o fermento do pão da vida. O pão que me deu vida.




Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.