terça-feira, 10 de setembro de 2019

TRAMAS


                                                                        
                                                                                                       Obra de Bispo do Rosário




Quem deseja tecer deve partir de uma “urdidura”. Não importa se são tecidos, textos, ideias, ações ou utopia que desejamos tecer: é sempre de uma urdidura que se parte. “Urdidura” vem de “ordo”, “ordem”. Como ensina Espinosa em sua Ética: em tudo há “ordo”, mas “ordo” não é tudo.  Toda urdidura é feita de fios dispostos retamente, como um destino, e disso já sabiam as mitológicas Moiras, que urdiam o destino dos homens. Mas apenas uma urdidura não forma um tecido de vida: é preciso a “trama”. A trama nasce de um fio que passa transversalmente pela urdidura: a trama acrescenta ao férreo destino a invenção de fugas, de “linhas de fuga” e “rizomas”. As árvores possuem raízes urdidas fixamente no espaço, raízes que as tornam imóveis; já os rizomas são plantas de horizontamentos e conectividade : suas raízes são tramas-agenciamentos bordando nova paisagem.

Toda urdidura é sempre igual: reta e determinada. Porém, há múltiplas formas de se fiar uma trama. Não há trama sem uma urdidura, isso é certo; porém não existe   tecido, de pano ou social, sem a invenção de tramas. Da “Moira Social” que o urdiu louco, Arthur Bispo do Rosário reencontrou sua transversal, e assim tramou sua lucidez como fuga da normalidade reta dos que pensam igual. Embora toda trama parta de uma urdidura, nenhuma urdidura pode determinar que trama se inventará a partir dela.

Gramática é urdidura, poesia é trama; cartilha  é urdidura, pensar é trama; família é urdidura, amor é trama; Estado é urdidura, sociedade é trama; código jurídico é urdidura, justiça é trama; sistema político é urdidura, democracia é trama.


Elton Luiz Leite de Souza - Escritor, doutor em filosofia e profo. da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

VAN GOGH E A BOCA DOS TRIGAIS.

                   
                                                                                                                     "Campo de trigo com ceifador" Van Gogh (1889)




Quando se olha os quadros de Van Gogh, sobretudo as paisagens, temos a impressão que eles são aspirados por uma grande boca invisível. Uma sensação não de perda, mas de fuga, como se o mundo fugisse de si mesmo para abolir-se no infinito.

E se isso não aparecer nas figuras, fica em  evidência em quadros como “o jogo de bilhar” ou “o quarto de Vicent” e, de uma maneira evidente, nas paisagens. Essa perspectiva é “forçada” e cria esse efeito de fuga, que cria uma aspiração no quadro, uma “invaginação”. Não é o imponderável do impressionismo manso, delicado; aqui em Van Gogh, é como um vento forte que balança tudo.

Van Gogh, na sua pintura, é um camponês.  Ele é atraído pelo campo, pela terra do campo e seu sol sagrado. Um paraíso perdido para Van Gogh, que o percorre a grandes passos como um incêndio ambulante (sua cabeleira ruiva); paraíso perdido porque a paisagem é engolida no seu infinito e como retorno, cria um vento que balança todo o quadro. Uma espécie de tempestade vinda do Buraco invisível, mas presente e que se manifestará no tiro de revolver e o Buraco no coração de Vicent.

Enganamo-nos em associar demais Van Gogh à sua pintura. Se há uma relação, ela é de um paralelismo e não de convergência.

Van Gogh é o trigal balançado pelo vento e não é. Van Gogh é um céu de tempestade azul da Prussia e não é. Tanto a paisagem pinta Van Gogh quanto Van Gogh pinta a paisagem. É fenomenológico e não psicológico; expressionista ou essencialista.

Uma pintura desse tipo é muitas vezes catalogada como expressionismo, mas o expressionista projeta sua subjetividade no que vai pintar. Aqui  há isso mas há o contrário: a paisagem se projeta em Van Gogh, fazendo assim um jogo de espelho até o infinito (reflexão abissal): Van Gogh não é suficientemente narcísico para se ver em todas as coisas. Ele é mão de ouro tanto afetivamente como esteticamente. Sua pintura é ontológica, quer dizer: ele pinta um dos rostos possíveis do ser. Vicent sente a paisagem como algo meio “máquina”, meio estranho e belo. A mesma coisa para os modelos humanos: o carteiro Roulin com sua grande barba ondulada e ruiva lembra os trigais.

Van Gogh, como todo artista bom, cria uma unidade no mundo que antes dele não era visível. Da mesma maneira Mona Lisa. Leonardo da Vinci nos permite reconhecer as “Mona Lisa” na rua.

O artista é um abridor de olhos (às vezes de lata de sardinha, fome...).  “Il donne à voir”, escreve Aragon, se não me engano. Ele nos faz ver as coisas como elas são (Elisabeth Bishop).

É uma grande besteira qualificar a pintura de Vicent de subjetiva, ligando sua obra com sua vida sofrida. Não é o sofrimento que fez  Vicent  pintar, porque sua pintura, em geral, não é essa vertente sofredora da vida. Seus trigais não são desesperados, eles cantam uma ária de opera poderosa.

O blábláblá dessas conversas a respeito da sua vida, quer nos fazer acreditar que os grandes artistas são anormais, doentes. Ora como escreve Antonin Artaud, os quadros de Van Gogh, são quadros da saúde. Vicent nunca foi louco, os zés manés fabricaram sua loucura porque esses querem que todo mundo seja como eles= burros.

Mas Van Gogh perdeu sua vida e ganhou sua morte no trigal – uma morte de Samurai (para ele que gostava tanto de estampas japonesas). Ele morreu como um grande guerreiro, para salvar sua honra: a honra reconquistada de Vincent Van Gogh.


Gilbert Chaudanne, escritor, pintor e crítico.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

HOJE TEM FESTEJOS NO CÉU








                          Foto de Zélia Siqueira


"Que bom que você veio minha santa.”

Era assim que ele se referia a mim, todos os anos quando eu chegava para o Baile de Congo de São Benedito, conhecido como Ticumbi de São Benedito.

Recordo-me das vezes em que queria cantar junto com eles, enquanto o congo apresentava e eu os fotografava. Ele, notando a minha tentativa de cantar, quando passava ao meu lado, durante a apresentação, elevava o tom para que eu escutasse e aprendesse. Muitas foram as vezes que observei sua generosidade para comigo. Era uma cumplicidade boa. Uma amizade que deixou muito boas lembranças entre nós, os amigos.

Hoje completa um ano de sua partida.

Apesar dos seus 81 anos de idade, quando do seu falecimento, ele tinha uma alegria e um brilho no olhar, que só encontramos nos seres prenhes de vida. Essa alegria e brilho no olhar, que mais parecia um menino matreiro, é o que marca fortemente, a sua passagem entre nós. Embora tenha havido muitos momentos especiais na companhia desse grande mestre de congo do Ticumbi de São Benedito, que jamais esqueceremos.

Suas rimas, suas brincadeiras, o som do seu pandeiro e da 8 baixos deixa saudades entre os amigos e todos da comunidade do Sapê do Norte.

Seu Miltinho, parecia mesmo era uma criança brincando de viver. Tanto brincou, que São Benedito dos pretos o convocou para os festejos em outra dimensão.

Por certo hoje tem festejos de São Benedito no céu, para comemorar um ano da sua chegada. E nós ficamos aqui escutando com os ouvidos do coração, os cantos desse amado mestre de congo, que ecoam das alturas para nos consolar.

Zélia Siqueira – formada em jornalismo e artes, é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

domingo, 30 de junho de 2019

UM OLHAR FRUTÍFERO








                                        Foto de Zélia Siqueira


Se olharmos detidamente, permitindo que o olhar desconstrua o modo como nos acostumamos a olhar as coisas, nos deparamos com uma linguagem própria daquilo que observamos, mas que poucos conseguem perceber. Sentimos a presença de elementos, que compõem essa linguagem, num todo.

Um fruto é composto de doçuras e acidez; cores e texturas; manchas e pequenas linhas que, espaçadamente, criam espaços abertos ou se fecham em si mesmas. Conduzem-nos a universos que dialogam com nosso espírito.

Hoje, ao descascar um cajá, colhido ainda sem madurar por completo, me detive diante de sua forma e de todo um conjunto que, ao observar, fez-me pensar que os frutos têm uma ética própria. Uma ética da natureza.

A casca era verde, mas a polpa, com veios esverdeados, já estava amarelada. Um fruto, ao brotar, tem uma outra cor; até chegar nessa que os olhos alcançam. Um amarelado ouro.

Diante do dourado do cajá, com suas linhas e forma arredondada, penso no estágio de transmutação  dos frutos e da vida, quando nasce e cresce. Quando alcançam cores que nossos olhos, ao observar, sentem tocar o coração e o espírito.

Os frutos passam por tons até alcançar a madurês, para alimentar os animais, incluindo nós, os humanos. Cada cor tem uma função num fruto que nos alimenta e nos fortalece. E as cores misturadas e vivas, trazem vitaminas que fortalecem  o nosso corpo feminino, mas também o masculino.

Portanto essa ética da natureza é uma ética de inclusão. Ao contrário dos humanos, que centram na sua individualidade e a destrói. Talvez os humanos devessem aprender com a natureza. Esquecer o que aprendeu e reaprender junto com ela. Onde houvesse uma transmutação no sentido de um todo; que alcançasse as cores que nossos olhos, ao observar, deixassem tocar o coração e o espírito.

A natureza esconde segredos nos frutos que alimentam o corpo, esteio da alma. E, por outro lado, abre-se para quem dela se aproxima com reverência, respeito e afeto.

A natureza sou eu junto com ela. Quem esquece que esqueceu, nada sabe de si e, muito menos, sobre ela.


Zélia Siqueira – formada em jornalismo e artes, é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

FREUD, O FESTIVAL





Sigmund Freud, (Estudos sobre a histeria): depois de ter estudado Lacan, durante algum tempo, com um grupo de psicanalistas, estou  diante de um pensador, escritor, médico, experimentador que posso chamar de clássico. Seu estilo é nítido, apolínico,  não há grandes exaltações, mas o que aparece é uma moderação, uma prudência; ao contrário do seu discípulo mais famoso: Dr. Lacan; barroco, aliás, primoroso à sua maneira.

Freud soube “olhar”. Diante de um caso clínico, ele não se deixa levar pela subjetividade e se adiante com uma prudência a respeito e, com respeito da pessoa analisada. Só me surpreende o uso da hipnose no tratamento da histeria, porque isso não me parece muito científico e lembra os hipnotizadores de feiras ambulantes, “Freud e sua bola de cristal”?!

E aí começa o festival Freud: sob  hipnose ele consegue o que não conseguiria no estado dito normal; porque na hipnose é o inconsciente que fala sem as censuras do consciente (mas há o perigo do hipnotizador fazer do hipnotizado seu “cachorrinho” – e isso pois, supõe uma ética no uso da hipnose). É fácil o hipnotizador manipular o hipnotizado até inconscientemente. Mas parece que deu resultado e que Freud descobre um fato inédito, esquecido do analisado, e que o consciente escondia recalcando-o.

Mas Freud é um cientista honesto e consegue bons resultados, mas é humano e não um Dr. “Todo saber”; pode cometer erros que ele mesmo reconhece. Inconscientemente pode induzir o analisando a dar informações deturpadas. Será que para o paciente esse método funciona? Parece que sim,  mas há recaídas. A psicanálise acredita com o eu cartesiano “tudo saber” e, diz que esse eu pode ser enganado pelo inconsciente. O eu não é um pêndulo que balança por cima do real. O eu consciente faz parte de outros eus (inconscientes). Fernando Pessoa! Mas esse inconsciente também é fruto do meio social. “Ninguém fica histérico sozinho” e, mesmo se essas pessoas são ausentes ou mortas, elas continuam vivendo sua psique de analisando.

A grande virtude de Freud e ter desligado a psique do sistema fisiológico, até o ponto de inventar um novo esquema=inversão. A psique age no corpo e o deixa doente = a histeria e outras doenças.

Na área de ciências é uma verdadeira revolução; exatamente na mesma época em que Einstein revoluciona as teorias do universo. A ciência deixa seu lado burocrático, para com o artista “mergulhar”no problema e esquecer a toda potência do eu cartesiano.
Mas a virtude de Freud é de saber conservar esse espírito científico numa área movediça como é  a psique humana. Ele pode ter se enganado em certos casos, mas isso vem do princípio de incertezas da psicanálise. A ciência às vezes se engana (geocentrismo) e, a medicina mais ainda.

Freud é prudente como um velho sábio chinês e, tem a modéstia de se desculpar quando erra.

Além de sua obra em livros, há de considerar a personalidade do Dr. Freud e reconhecer nele um “honnête homme”, um “gentleman epistemológico” que sabe que lidar com seres humanos não é lidar com ratos brancos de laboratório. Trata-se de um caso excepcional de lucidez pesquisadora e crítica.
A psicanálise surge como remédio para uma ciência que estava cheia de cientificismo e que achava que já tinha descoberto a chave do “mistério”. Freud como  Einstein. Recoloca os relógios nas suas horas: entramos na era do indefinido, e isso, na própria ciência.

E curioso notar que os três homens que foram os pilares do século XX, foram três judeus: Marx, Freud e Einstein. Não é uma coincidência, porque a comunidade judaica é, por excelência, ligada ao livro. O que faz com que nossos judeus ocidentais sejam ligados aos livros; quer dizer, estudiosos.
A verdade científica é independentemente das ideologias, que são aliás, filosofias de botequim ou de mercearias.


Gilbert Chaudanne, escritor, pintor e crítico.

segunda-feira, 29 de abril de 2019

FESTEJANDO À GRANDE MÃE





                         Foto de Zélia Siqueira



O dia está tão especial que dá vontade de alçar voos nos ares desse céu de anil, com minha varinha de condão, para completar a magia que se instala no passar lento e saboroso das horas, enquanto escrevo, nessa tarde  de uma suave serenidade. Perpassa aqui, uma correte de ar fresco, que impele-me a levantar para conferir o que os meus sentidos já pressentira. 

Há cantos. 

Lá fora bem-te-vis entonam suas agudas vozes. Outros passarinhos menos exóticos, mas não menos em matéria de sonoridade, complementam o coro com seus belos cantos.  O que também moveu-me a levantar, para conferir a obra da natureza. 

Desloco-me até a porta, que dá para o vasto quintal da “Fonte Grande”, tomado pelo verde pino, com variação de luz e sombras, que ressaltam as degradações de verdes. Observo arrebatada, esse laboratório vivo de verde albahaca, verde trebol, verde pera, verde lima. Verde mesmo.

Ainda tomada pela passagem desse dia dela e, sem saber o que fazer com tudo isso que os meus olhos e meu espírito alcançam, começo a cantar com os passarinhos:

"- Iaiá você vai à Penha
Me leva, ô me leva
Eu vou tomar capricho
Meu bem vou trabalhar
Eu tenho uma promessa a pagar
Essa promessa que eu tenho a pagar
É a Santa Padroeira 
Ela vai me ajudar
Essa promessa que eu tenho a pagar
É a Santa Padroeira
Ela vai me ajudar
Ô Iaiá."

Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

As noites revelam segredos







                                    Gregório Colbert (fotógrafo e documentarista canadense)



O vento é amigo das noites. Na solidão das horas, quem estará desperto para notar esse enlace orgástico e afetuoso, entre esses dois fenômenos da natureza. Talvez um galo que cante distante. Talvez a coruja que sobrevoa a margem da floresta negra; ou o morcego frugívoro, que polinizam as flores dos bosques e jardins, na espera dos bons frutos.

O certo é que as noites revelam seus segredos perfumados. Mas nem todos estarão aptos a percebê-los. As noites escondem mistérios e encantamentos nas raízes das plantas.

Árvores dançam com o vento; que faz amor com elas e exalam odores perfumados, que seduzem espíritos despertos. E, quando amanhecem os dias, germinam flores e frutos, por todos os horizontes dos campos livres, que só as deusas sabem presenciar, por "saber sem saber".

É a fertilidade mostrando aos homens e mulheres que dormem, mas eles não sabem "entender entendendo", porque estão tomados  pela letargia. Nem sabem sonhar um sonho que nasce da alma, que se alimenta de si mesma.

As noites revelam segredos, que só se escutam em jardins suspensos; quando a poesia nos põe asas para ver o mundo e, contemplando com olhos de pássaros, visitamos florestas mágicas.


Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

PAULO FREIRE, O ANDARILHO DA UTOPIA







                                       UMA UTOPIA EM CONSTRUÇÃO

   
                                                                                                Foto de Zélia Siqueira

Uma vez ouvi alguém dizer que falar difícil é fácil, mas que o difícil mesmo é falar fácil. Talvez ai resida a beleza do solo Paulo Freire, o andarilho da utopia, interpretado pelo ator, diretor, palhaço, professor, fundador do Grupo Off-Sina e da Escola Livre de Palhaço (Elispa), Richard Riguetti, com direção de Luiz Antônio Rocha.
O espetáculo reúne uma série de elementos como a simplicidade, desde a dramaturgia, onde Junio Santos faz importantes recortes da obra de Paulo Freire, contextualizando-os e, através de fragmentos de outros dramaturgos como Brecht e Ionesco (diga-se de passagem, o primeiro épico e o segundo absurdo), além de músicas de época e atuais, acaba por propiciar ao público o que há de universal no pensamento do pedagogo.
Da cenografia, nesta mesma linha, não tem nenhuma pretensão ilusionista para com a plateia e a iluminação é tão precisa que em vários momentos ela desaparece para emergir o personagem. Tudo é mostrado às claras, desde os adereços até o espaço cênico que se transforma e muda de lugar na medida em que o ator se movimenta, não tem coxias e nem rotunda e o público está diante do esqueleto do teatro, por dentro.
O mais importante é que esse suposto "distanciamento", ou seja, a consciência de que se está no teatro e que o teatro não é a realidade se resolve numa dialética fundamental, considerando que a estrutura do espetáculo, entendido como um ato "cenopoético", onde reúne linguagens de circo, teatro de palco e de rua, além da poesia, é claro, permite ao espectador se aproximar e até mesmo entrar na obra, na medida em que o ator/personagem Richard Riguetti o convida para compor a cena e que a peça se transforma num ritual e o personagem Paulo Freire se mostra como uma espécie de "contador de causos" que é a sua maneira amorosa de decifrar o mundo que vai de seu quintal às galáxias e das galáxias ao seu quintal, quase como uma brincadeira.
A sinceridade do personagem que se empresta para que a poesia de Paulo Freire desabroche na sua voz, mais a suave e ao mesmo tempo segura direção de Luiz Antônio Rocha revelam a nobreza e a maturidade deste espetáculo, apesar de ainda estar na estreia.
Tendo em vista os tempos que correm, Paulo Freire, o andarilho da utopia, transforma-se num ato de resistência e, ainda mais, uma resistência que enfrenta a truculência com outras armas, ou seja, com o projétil da paz como possibilidade de vazar as nuvens do absurdo da intolerância para atingir o coração com o amor ao conhecimento.
Sim, Paulo Freire será o eterno andarilho, aquele que anda muito, percorre muitas terras e anda de forma erradia para os que não acreditam no sonho. Sim, Paulo Freire é a utopia [do grego "ou" (não) e "topos" (lugar)], a busca permanente e incansável desse lugar ideal onde reina a harmonia entre os indivíduos e o compromisso com o bem-estar da coletividade. Assim, se a utopia é este não-lugar, ou um lugar que não existe, ser andarilho é lutar para ele venha a existir e esse espetáculo está contribuindo com o alicerce desta construção.


- Wilson Coêlho, poeta, ator e diretor teatral.





terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

SER OU NÃO SER




                                   O Semeador - Van Gogh



A moldura do poder seduz e engessa qualquer forma de vida. E esse poder simbólico, que também se expressa em qualquer função, nos roubam a naturalidade de ser. "Ser ou não ser, eis a questão". Ser artista é escolher ser... E ser nesses tempos contraditórios, é uma arte que escapa à multidão ensandecida e disforme.

Vamos tecer os fios que nos conduz à liberdade. Vamos bordar uma paisagem de homens e mulheres livres. Ser ou não ser, eis a questão, da nossa temporalidade. Ou de algo que extrapola a compreensão das massas desprovidas do cheiro de liberdade? Ou seremos esse amálgama que cristaliza uma verdade absoluta e traiçoeira, para com a vida, não nos permitindo sonhar?

“Duas coisas me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim.” Emmanuel Kant.

O céu estrelado nos permitem ao devaneio criativo, como nas noites estreladas de Van Gogh. E a lei moral, porque o espírito se ocupa e se volta para as coisas belas, com maior intensidade, desvinculando-se de uma egocentricidade.



A alma reclama a indiferença, “Nunca se protele o filosofar quando se jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro pra conquistar a saúde da alma.” Numa fresta de luz, Epicuro lança-nos o desafio atemporal e, ao mesmo tempo nos convoca a ser.

Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Aventuras de uma nômade




Existem mulheres que viajam o mundo, até depois dos oitenta anos de idade e pretendem chegar aos noventa, nessa aventura de viver. Será que chego lá?






Às vezes me pego pensando se chego a tanto, em minhas viagens de aventuras. A coluna já não colabora. Na última viagem que fiz, fora do país, tive que trocar, meio a contragosto, a mochila por uma bolsa de rodinha, que assemelhava a uma mochila. Mas confesso que não me senti tão confortável quanto se imagina; ao contrário, senti foi falta da minha velha companheira de  vinte e três anos de viagem, que continua muito linda e perfeita.

Alguém pode achar estranho quando digo isso. Mas é verdade. Uma mochila é muito confortável, não se sente tanto o peso da bagagem, desde que as astis sejam bem acolchoadas. E olha que minha mochila é quase do meu tamanho.  Mas o que importa mesmo é a saúde, para continuar. O que é comum a um viageiro, ser dotado de um espírito livre e de um vigor mental e físico invejável. Parece que já tem uma pré-disposição à vida nômade, que lhe permite ir além do horizonte que limita o homem comum.

Viajar é se aventurar para além do seu entorno. Experienciar outros mundos possíveis. Outros cheiros, outros sabores, outras histórias. Conhecer e romper limites. E, sobretudo, aprender e compreender o quão importante é a troca e a solidariedade no caminho.

O imprevisível também nos espreita. Só não podemos deixá-lo nos abater; pois se assemelhando às águias, os viageiros são dotados de uma percepção ágil, e logo sabem como desviar a pedra do caminho. As trocas no percurso, são imensas e, a cordialidade, nunca está de toda ausente.

Os nômades viageiros, são como os pombos-correio, ao cruzarem seu caminho; trazem sempre as notícias de lugares que você nunca alcançou. Te indicam lugares menos arriscados, hospedagens mais confortáveis e ao alcance de seu bolso. Além de muitas vezes, fazerem parte do percurso contigo. E quando alguém se acomete de algum mal estar, sempre se disponibilizam para os cuidados necessários. Formamos elos intransponíveis, até que se possa prosseguir, cada um o seu rumo.  Muitas vezes partilhamos a mesma comida, o mesmo quarto, mas todos em liberdade.




                           Foto de Zélia Siqueira


A última viagem será a mais notável aventura para outra esfera.  Nela partiremos sem o peso da bagagem, porém levaremos a leveza da experienciação, em vida; quando se fez sentido viver.


Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.







quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Não nos acostumemos com as normalidades inaceitáveis









                        Foto: Zélia Siqueira.


Falei hoje com uma pessoa muito grandiosa. De uma integridade, dignidade e senso de justiça, que raramente se encontra num ambiente de trabalho doentio e fora dele. Discernimento foi o que nunca faltou a essa pessoa; que vou chamá-la aqui, de "Maria." Em tempos de vigília é bom que não se exponha uma pessoa como essa. Por isso dei-lhe o codinome de Maria. Daí penso em Maria, mãe dos filhos de Deus. Maria, protetora dos filhos dos homens. Maria, a amiga verdadeira. A Grande Mãe.

A amiga de que falo aqui, foi a aliada que encontrei, em momentos de enfrentamentos naquele ambiente doentio, de pessoas adoecidas e  muitos, indelicados, onde um dia tive o desprazer de conviver. Por muitos anos em que grande parte de minha vida, passei ali, tive duas aliadas. Uma Maria que me acolheu quando cheguei e outra de mesmo nome, que se colocou ao meu lado, ao sair dali.

Foram longos anos de adoecimento; de perseguições políticas; de assédio moral e sexual; torturas psicológicas; para que me enquadrasse na "caixinha", que enquadram pessoas sem personalidade e sem caráter. Me adoeceram, mas não me dobrei.

No decorrer da minha vida de escrava, me recusei a promoção para representar a empresa na justiça, contra os trabalhadores. Por isso fui tratada como inimiga, e não só por isso. Tiveram inúmeros outros fatos, que vou me poupar de discorrer aqui, porque me é muito doloroso e vocês não têm nada com isso, caros leitores. Se o assunto veio à tona, foi porque, ao falar com a amiga, "Maria", hoje, me peguei pensando como será a vida dos trabalhadores em tempos sombrios, como agora.

Os corpos serão aniquilados com mais requintes de crueldade, com mais intensidade e adoecerão, enquanto as testemunhas silenciarão ou se colocarão ao lado do patrão/poder? Ou teremos a sorte de cruzararem nossos caminhos, Marias amigas, semelhantes à minha, que não se calam diante das injustiças?


Que não nos acostumemos com as chibatadas; com as normalidades inaceitáveis e indelicadas; com as mordaças e com o terror. Sejamos "Marias", para que não estejamos sós.



Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.



sexta-feira, 2 de novembro de 2018

a fortaleza



No poema “Agroval”, Manoel de Barros narra o que faz uma imensa arraia quando as águas do pantanal secam e põem a vida em risco: a arraia abre suas grandes asas e pousa no barro, retendo parte da água abaixo de si. Entre seu abdômen e o chão úmido a arraia inventa um “pantanal menor”, um pantanal de resistência. Para que a vida não morra, a arraia convida tudo o que vive para vir morar sob suas asas. Migram e se instalam ali não apenas bichos, instalam-se também sementes e brotos de futuras flores, de tal modo que debaixo da arraia tudo o que vive acha um ventre. Sob a proteção da tal Gaia, a vida continua, resiste, cresce, fortalece-se; sob o coração da arraia acontecem alianças, agenciamentos, contágios, enamoramentos da vida por ela mesma, una e múltipla. Até mesmo uma festa se esboça, feito uma Kizomba a celebrar a vida salva pela Vida. Pois lá fora, quando as águas secam, os predadores sorrateiros lucram com a morte, e ficam à espreita. Mas a arraia é forte, resistente, não a vencem os predadores oportunistas. Não seria tal ação da arraia o modo como a própria natureza nos ensina o que é a virtude ético-política que Espinosa chamava de “fortaleza”? Não seria tal comunidade de resistência pela vida a expressão na natureza daquilo que nossos ancestrais, em luta contra a tirania, nomearam Quilombo?

“Poesia pode ser que seja fazer outro mundo” (Manoel de Barros)

"Se roubam a liberdade de um poeta, ele escapa por metáforas” (Manoel de Barros).






Elton Luiz Leite de Souza - Escritor, doutor em filosofia e profo. da UNIRIO - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e da Faculdade São Bento do Rio de Janeiro.


segunda-feira, 15 de outubro de 2018

“Guerreiro Zulu”









                                                                                                     Obra de Irineu Ribeiro



A estátua do “Guerreiro Zulu”, monumento eregido em frente à Assembléia Legislativa em homenagem a contribuição do povo afrodescendente, ao desenvolvimento sócio-cultural e econômico do Espírito Santo, é de autoria do artista plástico e escultor afrodescendente, Irineu Ribeiro. A obra “Guerreiro Zulu”, composta pelo busto de um negro, com pescoço alongado, faz alusão ao instrumento musical, casaca. Tal instrumento de percussão, se trata de um ícone representativo de uma importante manifestação cultural capixaba, denominada, Congo – em que o negro é depositário desse saber popular.

Zélia Siqueira – formada em jornalismo (FAESA) e artes (UFES), é fotógrafa, escritora, poeta e pintora.